Pensamento confuso - Parte 2
Pensamento confuso
Por Marli Santos*
Aprendendo e ensinando por intermédio de uma abordagem ecológica e integrativa com fios de lã conectando os nós do pensamento confuso.
Teia construída pelos estudantes, simbolizando o pensamento confuso-complexo. |
O texto que se segue trata da experiência relatada no artigo
anterior sobre uma oficina para estudantes numa escola pública de ensino técnico em
gestão ambiental, em Campinas no ano de 2012. Pode parecer um tanto estranho esse
título acima. O que isso tem de relação com a experiência relatada no artigo
anterior? Já voltarei ao assunto, mas antes vou contar uma história de trás
para frente.
Ao sair da escola em direção ao estacionamento, subitamente
me dei conta de que o tempo parecia ter parado enquanto trabalhava com os
estudantes. Já era noite, a luz do sol havia dado lugar ao brilho prateado da
lua cheia, imponente, mostrando a sua beleza e a força dos opostos
complementando a totalidade. A sensação de haver completado aquela jornada prazerosa
- sentindo a temperatura mais amena tocando o meu rosto e escutando de perto os
sons emitidos pelos pássaros – me trouxe uma alegria e uma profunda sensação de
gratidão. Foi com essas sensações que me dirigi ao descanso, renovando em mim a
esperança de que algo havia tocado o coração daqueles jovens e expandindo a
minha consciência sobre a importância da dimensão interior no processo educativo.
Uma voz ofegante, chamou a minha atenção me fazendo olhar
para trás: “Você promete que virá novamente.” Era uma estudante juntamente com
outros colegas, formando um grupinho, dirigindo-se para mim antes de eu entrar no carro que me aguardava. “Sim, voltaremos a nos encontrar em breve”,
respondi com um sorriso. Eles retrucaram: “Quando?”
Detectando o estado de espírito e o clima em sala de aula
Naquele dia, trabalhamos uma atividade que considero muito rica
porque lida com a dimensão temática sob a ótica da complexidade e do pensamento
sistêmico.
Antes de começar a atividade, utilizei uma técnica simples
para percepção do estado de espírito dos estudantes, incluindo o meu próprio. Sentados
no chão, formando um grande círculo, os estudantes foram convidados a se
posicionar, cada um a seu tempo, em relação às duas mensagens detectadoras
de estado de espírito que eu escrevi no quadro: “Me sinto como um
porco-espinho, lento e meio espinhoso”. “O céu esteve cheio de nuvens escuras
nos últimos dias, mas o sol está começando a furar as nuvens”.
Essas mensagens, em geral, associadas ao mundo natural
(clima, animais e plantas) facilitam o estabelecimento de conexões entre os
sentimentos de cada um antes do início de uma atividade mais desafiadora. Essa
atividade simples e rápida nos permite detectar o estado de espírito durante o
processo de aprendizagem. Ela serve para recalibrar os sentimentos e abrir para
a escuta indireta entre uma atividade e outra. Foi então nesse momento que pude
perceber que ainda havia um bocado de ansiedade naquele ambiente de
aprendizado, suspiros represados por parte de alguns estudantes: “Será que eu
vou saber responder as perguntas?”, uma estudante me confessou discretamente quando
eu me aproximei dela para escutá-la. “Como será a minha avaliação caso eu não
saiba responder as perguntas?”, uma outra me interrogou timidamente. “Tenho
vergonha de não saber as respostas”. Essas e outras preocupações captadas
naquele momento me ajudaram a avaliar o bem-estar emocional da turma como um
todo, me dando elementos para repensar alguns aspectos da vivência intitulada Pensamento
Confuso.
Muitas vezes nos organizamos para uma aula com atividades
desenhadas para cumprir determinados objetivos cognitivos, mas nos esquecemos
de prestar atenção aos sentimentos presentes entre os estudantes, que vão desde
a insegurança, a ansiedade, o estresse e até mesmo os medos com a própria imagem
e o bullying. Esse ambiente interno tumultuado, confuso, próprio de uma fase da
vida em que o cérebro está em processo de profunda transformação, pode
influenciar significativamente o processo de aprendizagem. Após essa calibragem
da temperatura dos ambientes interno e externo, seguimos para vivenciar uma
outra atividade mais desafiadora, porém divertida!
Pensamento Confuso é uma atividade interativa que propicia a discussão de temas
complexos de magnitude global, como aquecimento global, direitos humanos,
justiça socioambiental, igualdade de gênero, conflito e guerras, entre outros. Sob
uma perspectiva pluralista e democrática, os estudantes são estimulados a
pensar de forma crítica e de maneira integrada. São desafiados a pensar
lateralmente em busca de soluções criativas na resolução, mitigação ou
prevenção de problemas atuais e futuros, como por exemplo o aquecimento global,
a emergência climática, crise pandêmica, além da temática da paz e da guerra
vivenciadas atualmente com seus efeitos nefastos em escala global. Há aqui a
intenção não apenas de trabalhar as habilidades cognitivas, mas também integrar
outras dimensões como a emocional, a social, a espiritual e a corporal,
incluindo também o entendimento de que o processo de aprendizado deve levar em
conta o conjunto de conhecimentos, habilidades, valores e experiências que os
estudantes trazem consigo, não sendo eles meros receptores de conhecimentos,
mas protagonistas na construção de saberes.
Retornando à atividade proposta, vamos aos procedimentos. Os estudantes foram convidados a formar onze grupos de quatro pessoas, sendo distribuídos de forma aleatória considerando, no entanto, uma maior diversidade possível (gênero, cor, altura, desenvoltura). Cada grupo escolheu um dos onze temas propostos: poluição ambiental, desnutrição, violação dos direitos humanos, esgotamento dos recursos naturais, racismo, desigualdade de gênero, urbanização, armamentismo, subdesenvolvimento, aquecimento global e pobreza. Em seguida, cada grupo se reuniu para inicar a discussão do seu tema como mostra a foto abaixo.
Grupos temáticos no momento do brainstorm. |
Cada estudante recebeu um crachá identificando o tema escolhido. Os grupos foram convidados a fazer uma espécie de brainstorm (discussão inicial sobre as opiniões e conhecimentos gerais sobre o tema) de maneira a identificar questões relevantes. Em seguida deveriam anotá-las numa folha de papel para servir de guia durante a etapa seguinte. Ainda na fase de brainstorm, os participantes do grupo escolheram dois representantes, um negociador estático e um flexível, para mediar as negociações, cada um exercendo funções distintas, visando a construção de consensos em torno de possíveis conexões entre os diferentes temas.
Na fase seguinte, os negociadores estáticos permaneceram de pé
no formato de um círculo tendo o fio do novelo de lã amarrado na cintura enquanto os
negociadores flexíveis circulavam na sala com o novelo de lã para negociar o
maior número possível de conexões com membros de outros grupos, retornando
sempre ao negociador estático para resumir os acordos firmados. Isso porque, os
negociadores estáticos eram responsáveis para negociar com seus pares durante a
“mesa redonda” (simbolizando os processos abertos, democráticos e
participativos). Para cada acordo entre os grupos em torno dos temas, seria
necessário materializá-lo, utilizando fios de lã de diversas cores (cada tema,
uma cor).
Toda uma logística foi necessária para organizar a sala e facilitar a discussão entre os temas: espaço aberto para permitir a circulação entre negociadores; espaço nas paredes para colar cartolinas com os resultados das negociações, registrando assim os pactos estabelecidos e as conexões temáticas; realocação de cadeiras do fundão da sala, formando um círculo para que os negociadores estáticos pudessem sentar-se para o diálogo na mesa redonda.
Você pode imaginar a confusão gerada até que chegássemos a um
entendimento para que essa atividade fosse iniciada. Tudo bem, isso já estava previsto
nesse processo pouco usual em sala de aula. Ao fim e ao cabo, tudo desembocou
na fase de debate entre os negociadores estáticos defendendo aguerridamente os
pontos de vista do grupo, tentando convencer os outros através de argumentos desenvolvidos
sobre as possíveis ligações e interrelações. Os dissensos também deveriam ser
assinalados durante essa fase chamada de “mesa redonda”, lembrando que os
negociadores flexíveis deveriam se manter ao lado do negociador estático dando-lhe
o suporte durante os diálogos, além de participarem ativamente do processo de
devolutiva – última fase desse processo.
Negociadores flexíveis buscando consensos através de discussões vigorosas, ao mesmo tempo em que se materializavam conexões entre grupos temáticos. |
Afora os conceitos construídos meticulosamente com a ajuda dos fios de lã, foi durante o debate em torno da “mesa redonda”, que algumas habilidades foram exercitadas e reveladas. Habilidades como, observação, cooperação, comunicação (incluindo escuta, expressão oral e escrita), negociação e pensamento lateral são exemplos que foram trazidos para o nível da consciência de muitos - talvez isso tenha ocorrido pela primeira vez durante a devolutiva.
Apresentação dos negociadores estáticos, com o suporte dos negociadores flexíveis, durante a mesa redonda. |
E foi assim que ao propor uma atividade que propiciasse aos estudantes
uma reflexão mais profunda sobre temas de natureza complexa e as interconexões
entre eles, existiria a possibilidade de experimentar essa ideia de que o pensar
profundo levaria incialmente a um estado de confusão para se chegar à
compreensão de que problemas complexos exigem igualmente respostas complexas. Sob
essa perspectiva, acredito que o tema da sustentabilidade se encaixa como uma
luva nessa atividade proposta sobretudo porque nos remete à ideia de
transversalidade.
Hora de desatar os nós: reflexão sobre responsabilidade socioambiental intergeracional. |
Foi interessante perceber que inicialmente os estudantes assumiram um papel de competição durante a vivência, procurando fazer o maior número de conexões num menor tempo possível. Talvez eu tenha deixado essa questão um tanto ambígua, mas no desenrolar da atividade, sobretudo na fase de conectar os fios de lã, alguns perceberam que não se tratava disso, ao contrário, era necessário cooperação, muita escuta e um pouco de humor durante o processo. Isso aconteceu justamente quando descobriram que deveriam desfazer os emaranhados de lã. Foi preciso muita presença de espírito, bom humor e gargalhadas para cumprirem a última tarefa antes de rumarem para o descanso merecido depois de uma tarde amalucada em meio aos inúmeros nós da teia do pensamento confuso!
A foto acima dá uma ligeira
ideia do trabalho necessário para pensar a complexidade, mas o leitor pode
apostar que o resultado é muito gratificante!
© 2022 Marli Santos. All rights reserved. Todos os direitos reservados.
Que bem estar me causou ler este artigo e pensar que uma alternativa de atividade como esta pode abrir os horizontes de um adolescente.
ResponderExcluirAtividade muito bonita, um tanto complexa e difícil de ser aplicada nas escolas publicas. Valer a pena tentar, porem acredito que seria necessário tempo extra que essas escolas não permitem. A avaliação não consegui perceber como foi feita, mas acredito ter sido na base de discussão com os alunos mediante causa e efeito, com questionários distribuídos aos participantes.
ResponderExcluirAchei de uma coragem desconcertante!!!!! (rsrs). Enfrentar temas "calientes" com uma dinâmica complexa como esta... a vivência por si já se mostrou engrandecedora, com certeza. Interessante a reflexão sobre o pensamento confuso. Promover isto com jovens é muito bacana.
ResponderExcluirAdorei a descrição da atividade. Seria maravilhoso se atividades com esta pegada fossem oferecidas aos jovensm especialmente aos mais carentes. Creio que traz luz ao pensamento, motivação, leveza, que cria uma relação diferente com o processo de aprendizado... parabéns pelo trabalho, pela coragem e leveza.
Que lindo trabalho minha querida, você sempre agregando valor com os seus conhecimentos. Você faz uma grande diferença e o seu exemplo nos dá forcas para seguir. Um grande beijo.
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