Série: Celeiro de Pardinho


Episódio 1 - O celeiro como metáfora da sala de aula integrativa 

O celeiro, que no passado servia de lugar para armazenar grãos e sementes, representando abundância e fertilidade, transformara-se em sala de aula para o exercício abundante e fértil do pensamento criativo, sistêmico e ecológico.


Por Marli Santos*


Na sala de aula nada convencional, durante um final de semana de muito sol, educadores compartilham seus conhecimentos e experiências sem amarras ou constrangimentos, com liberdade e descontração. Foto: Marli Santos, 2007.














O cenário dessa Série se desenrolou numa fazenda, cujo ambiente fora intencionalmente remodelado para abrigar conceitos de sustentabilidade ambiental. Minha percepção foi de que quase tudo ali havia sido meticulosamente redesenhado, passando por um processo de transformação radical com o mínimo de impacto ao ambiente natural. Conceitos inspirados nos sistemas ecológicos, evidenciados em cada cantinho da fazenda, foram cuidadosamente incorporados nos processos de restauração e regeneração da biodiversidade, utilizando-se criativamente do potencial de recursos naturais ali existentes.

Esse lugar, que outrora servia para a produção de alimentos e criação de gado, foi transformado num espaço de ensino-aprendizagem, gerenciado por uma organização não governamental, cujo foco de suas atividades centrava-se, à época, no tema da sustentabilidade ambiental na região. Soava como uma proposta à frente do seu tempo, considerando-se a realidade brasileira naquele momento. 

I

Uma floresta nativa ali existente se manteve em pé com toda a sua exuberância, não apenas diligentemente preservada, mas ampliada e diversificada com novas espécies da região. E teve uma novidade: uma trilha com percurso desafiador havia sido criada, possibilitando que atividades de educação ecológica pudessem ocorrer com segurança e tranquilidade, sobretudo para facilitar a percepção dos sentidos. Descobri-la escondida bem no coração da floresta, quando eu fazia o reconhecimento da área para adaptar as atividades educacionais previamente planejadas, foi extremamente estimulante e desafiador. Foi nela que fizemos uma atividade memorável, adaptada e reformulada para incluir filhos de participantes que, à época, eram ainda crianças com idades entre 5 e 11 anos. Voltaremos a essa cena mais adiante, quando chegarmos a “temporada de inverno”.


A floresta encantada: cenário de tirar o fôlego. Foto: Marli Santos, 2007.


II

Voltando à descrição sobre a transformação desse lugar, me chamou a atenção a adoção do controle biológico de pragas, substituindo os agrotóxicos abundantemente utilizados no passado. Os produtos de higiene pessoal (disponibilizados para os hóspedes) e os de limpeza, passaram a ser mais amigáveis ao meio ambiente. Isso, contribuiu significativamente para dar vida nova ao lago, localizado numa área bem próxima à sala de aula, trazendo de volta peixinhos e outras espécies de animais que dependiam de água limpa e bem oxigenada para subsistir. Foi estimulante me deparar com esse cenário de transformação – ainda em curso naquele momento -, servindo para que eu continuasse a fazer escolhas ecologicamente cada vez mais conscientes. 

III

As novas casinhas, construídas para abrigar hóspedes (como eu), foram edificadas com base em princípios do ecodesign (concepção ecológica) que, dentre outras coisas, propõe a inserção nos projetos construtivos de variáveis ambientais como o conforto ambiental. Nesse caso específico, utilizando-se do telhado verde e do paisagismo funcional no entorno das edificações, bem como o posicionamento da construção seguindo a melhor forma de aproveitar a incidência do sol, do vento e da luz natural. Tudo isso foi cuidadosamente ajustado aos projetos arquitetônicos como forma de aproveitamento energético e de conforto térmico.

Além disso, como forma de aproveitamento da estrutura construtiva, foram restauradas casas já existentes na fazenda, seguindo os mesmos critérios de desenho ecológico com reaproveitamento de materiais de outras construções (p. ex. portas, janelas, tijolos e telhas). Tudo muito simples, com um toque de leveza e conforto, sem desconsiderar a estética do belo-natural — qualidades harmoniosamente integradas à beleza natural do lugar.

A meu ver, havia uma preocupação genuína em transformar o espaço num ambiente que, por si só, serviria como veículo sensibilizador de práticas pedagógicas focadas no tema da sustentabilidade ambiental.

Corte da cena para reflexão

Me chamou a atenção dois aspectos importantes que ainda não haviam sido incorporados nos projetos construtivos desenvolvidos naquela época. De um lado, a ausência do uso da energia solar como fonte sustentável e limpa de energia e, de outro lado, a inexistência de projetos para a captação de água de chuva e reuso de água.

É certo que de lá para cá, muita coisa avançou no país, ampliando a consciência de setores da sociedade brasileira sobre a importância da utilização de fontes alternativas de energia limpa, como a solar e a eólica. Da mesma forma, as questões relativas às instabilidades dos sistemas de abastecimento de água passaram a ocupar as mentes de muitos brasileiros, muito em função da emergência climática global, resultante do aquecimento global. À época, essa questão parecia ainda muito distante e pouco se falava sobre o assunto, inclusive sobre as queimadas de florestas, decorrentes de secas prolongadas devido às mudanças climáticas.

IV

O ambiente de aprendizagem não era dentro de uma sala de aula convencional, mas num espaço amplo, arejado e com janelas de vidros transparentes para deixar muita luz natural entrar, permitindo que os nossos olhos pudessem desfrutar dos muitos tons de verde de uma parte da vegetação em processo de regeneração. Era possível sentir o frescor produzido pela vegetação do entorno quando as janelas eram abertas durante as manhãs quentes e ensolaradas do verão de 2007.  Ainda me lembro do perfume exalado pelas flores e plantas se misturando à nossa respiração ofegante quando praticávamos algumas posturas energizantes de yoga.  

Nesse espaço, que utilizamos como “sala de aula”, outrora fora utilizado como um celeiro da fazenda, tornando-se posteriormente uma grande sala de múltiplos usos. Para a minha surpresa e alegria, encontrei nessa sala recursos didáticos não convencionais bastante preciosos. Eram recursos pouco usuais para qualquer educador, mas para mim eles fizeram uma grande diferença. Tinha diferentes tipos de almofadas, colchonetes, cadeiras e mesinhas removíveis, cobertores para os momentos de relaxamento profundo e meditação guiada, entre outros – tudo de que eu precisava para facilitar a introdução de práticas contemplativas no currículo oferecido durante o programa de capacitação em educação e sustentabilidade.


O celeiro como forma e conteúdo da sala de aula nada convencional.



Recordo-me vividamente de que havia inicialmente uma certa estranheza por parte de alguns participantes, uma vez que esse tipo de sala de aula ainda era uma novidade para a grande maioria. Considerei isso totalmente normal, haja vista a tradição predominantemente cartesiana dos formatos e dos conteúdos de sistemas educacionais, não apenas no Brasil, mas em muitos lugares mundo afora. A esse respeito, me recordo de um episódio um tanto divertido e surpreendente. Foi no ano de 2004, num país da Ásia Central. Um dia logo pela manhã, quando estava conduzindo uma das atividades educacionais como consultora da UNICEF, me dei conta de que havia entrado silenciosamente na sala um consultor suíço para observar o andamento do nosso trabalho. Pela linguagem corporal do observador, pude perceber que o cenário encontrado lhe deu uma espécie de nó na cabeça. Então, eu resolvi parar o que estava fazendo e ir ao seu encontro na tentativa de acalmá-lo. Indaguei: “A sala parece confusa, não é mesmo?  Não se preocupe, em meio ao caos aparente, há muita organização e planejamento. Você pode até notar que eles parecem felizes por aqui”. E completei perguntando: “Você consegue perceber isso?” Ele assentiu com a cabeça, num gesto educado, mas parecendo pouco convencido com a minha explicação. O interessante foi vê-lo, com um ar desconfiado e discreto, observando atentamente cada movimento da sala até o final da atividade. Confesso que até hoje eu não sei se ele ficou convencido de que aquela sala de aula, com sua pedagogia nada convencional, era mesmo eficaz para um país que havia enfrentado uma guerra civil nos anos 90 em busca de independência e democracia. 

V

Além do celeiro, outros espaços ao ar livre foram recuperados, redesenhados e construídos. Me lembro bem de uma trilha construída com terra batida, ladeada por bambuzais grandiosos que davam uma sensação de proteção. A trilha nos conduzia diretamente para um cantinho com formato arredondado, coberto por bambus que imitavam o domo de uma catedral de estilo gótico - uma maravilhosa adaptação! Imagino que esse espaço tenha sido criado com a mesma concepção ecológica, utilizando as riquezas naturais que já existiam em abundância por ali, a exemplo dos bambuzais e da cachoeira. Talvez tenha sido redesenhado, aproveitando o potencial natural para que surgisse ali uma espécie de “templo meditativo”. 


Trilha conduzindo ao "templo meditativo". Foto: Marli Santos, 2008..


Depois de alguns encontros imersivos, em que já havíamos adotado esse lugar para a realização de algumas atividades, notei com agradável surpresa que esse “templo meditativo” servia de refúgio para alguns dos participantes do curso. Às vezes eu os observava saindo discretamente (à la française). Em geral, isso ocorria quando havia um tempinho livre depois do almoço. Imagino que para alguns era uma maneira de buscar no silêncio e na privacidade uma forma de aquietar a mente. No meu imaginário, isso ocorria sob o desfrute de sons suaves e relaxantes produzidos pela cachoeira de água cristalina que, num movimento contínuo, deslizava sobre pedras solidamente fincadas entre bambus solitários e bromélias coloridas. 





Corte da cena para mais uma reflexão

Uma das muitas coisas que aprendi durante esse processo foi confirmar a ideia de que o contexto informa o conteúdo. A forma como o espaço está organizado (onde ocorre a experiência), pode nos revelar muito sobre o tipo de abordagem pedagógica adotada nos processos de ensino-aprendizagem. 

Uma ambiência intencionalmente criada, poderia nos apontar dois caminhos: um amplo e outro estreito. O primeiro, diz respeito a tudo aquilo que poderia se apresentar à nossa frente como um amplo espectro de possibilidades para o aprendizado. O que poderia contribuir para o desenvolvimento de uma mentalidade mais aberta, capaz de acolher tudo aquilo que poderia emergir do processo - não apenas sobre o aprender fazendo, como também sobre o perceber-se inteiramente imerso dentro da experiência com pausas intermitentes para a reflexão. O segundo, poderia se apresentar de forma mais estreita e limitante, podendo nos conduzir para um lugar obscuro, onde o temor da mudança nos impediria de crescer e de se desenvolver a partir da experimentação de novas possibilidades de aprendizagem.

VI

Foram nesses ambientes (interno e externo), que o afeto e o acolhimento encontraram eco para florescer. Isso abriu espaços para que fossem construídos os primeiros sentimentos de confiança, segurança e respeito entre os participantes, dando sustentação ao aprendizado cooperativo, reflexivo e prazeroso. E foi nessa ambiência, construída paulatinamente e cuidadosamente, que começamos a nossa jornada de aprendizagem. Durante meses, aprendemos juntos como se abrir para reaprender o que já se pensava saber, utilizando-se de uma abordagem convivial, interativa e integrativa, fundamentada sob uma perspectiva aberta, informal, colaborativa, democrática, participativa e inclusiva. 

Nessa sala de aula integrativa, não convencional, todos aprendem e ensinam com tudo e com todos. Há nela, a possibilidade de aprender a praticar uma espécie de interdependência relacional entre forma e conteúdo, cujo fundamento subjacente é o exercício da presença plena, ativa e reflexiva. 

Continua no próximo episódio…


* Educadora, ambientalista, autora do livro Educação para a Cidadania Global (2006)Co-fundadora  do Núcleo Internacional de Educação e Gestão Ambiental (www.niega.org.br).



 © 2022 Marli Santos. All rights reserved. Todos os direitos reservados.

Comentários

  1. Muito bom ter acesso a esta experiência. Quantos pontos importantes para refletir e avaliar. Com o passar dos anos quais os avanços e retrocessos podem ser observados a partir desta abordagem.

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  2. Foi um divisor de águas em minha vida pessoal e profissional! Eternamente grata!!!

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